Malandro é um dos arquétipos mais perenes cravados no inconsciente coletivo do povo brasileiro. Personagem real e imaginário, ele suscita fascínio e medo, respeito e desprezo, amor e ódio na mesma proporção. Era e continua sendo visto como alguém cuja esperteza se concretiza na lábia sedutora e nos pequenos golpes aplicados contra os otários, apesar da imensa simpatia que o destaca no meio da massa.
.Mas o malandro do início do século XIX não existe mais. A figura que ainda nos vem à mente quando nele pensamos é a de Zé Pelintra, entidade de umbanda representada pelo negro de terno branco e chapéu panamá. Na música popular, o sambista Moreira da Silva se dizia "o último malandro": usava e abusava das gírias da malandragem e se vestiu, até o fim da vida, como os antigos boêmios da Lapa. Este personagem urbano perdurou até meados da década de 40, quando o samba, a capoeira e a macumba começaram a sair da marginalidade e passaram a ser aceitos como símbolos da nacionalidade..A valentia perde sua razão de ser quando o revólver substitui a navalha. Esta é a mudança principal que transforma o malandro, da noite para o dia, em um tipo romântico e ingênuo. Diante do revólver, seu andar enviesado perde o sentido - antes indicava que o dono daquele gingado tinha jogo de cintura e apurada técnica de capoeirista. Em suma, era bom de briga..Na definição de Gilmar Rocha, autor de Navalha não corta seda: Estética e Performance no Vestuário do Malandro, não era um balanceado qualquer aquele jeito de andar: "Trata-se do famoso passo de urubu malandro, com o qual coloca-se o tempo inteiro em estado de prontidão". Viria exatamente desse mal andar (Miran de Barros Latif) a origem do termo malandro..Além do andar enviesado, o malandro era reconhecido pelo modo de se vestir. Por ser porta-voz dos pobres e marginalizados, a roupa era aspecto fundamental na construção de sua identidade. Andar bem vestido não era apenas reflexo da vaidade. Era uma obrigação imposta moralmente ao malandro - estamos falando de um homem que, muita vezes, não tinha nada na vida, a não ser a roupa do corpo..É importante observar que não havia um único tipo de malandro - a malandragem era um estilo de vida que agregava, por exemplo, o "malandro do morro", o "malandro da Lapa", o "malandro dos terreiros de macumba", o "malandro da capoeira" etc. Eles eram identificados justamente pelos trajes. Segundo Gilmar Rocha: "O malandro-sambista quase sempre usava chapéu de palha, camisa listrada e sapato branco, tão bem representado na pintura de Heitor dos Prazeres; o malandro-valente, normalmente boêmio e violento, vestia terno branco, sapato de duas cores, chapéu panamá. Quando usava lenço no pescoço estava dizendo, indiretamente, que era um capoeira"..O lenço no pescoço não era só um capricho. Feito de seda tinha a função de cegar a navalha do rival, numa ocasião de briga. Quando aplicada sobre a seda, a navalha escorria, deslizava e não cortava. O escritor Luís Noronha em seu livro Malandros: Notícias de um Submundo Distante conclui que os capoeiras exerciam um papel político na medida em que ditavam regras de conduta que ajudavam a organizar a malandragem:.1) Nunca usar arma de fogo, só sendo permitidas a navalha e o cacete de pau;2) Nunca trabalhar nas segundas-feiras, sacrificando qualquer negócio para preservar este princípio;3) Manter a identidade do grupo na forma de se vestir, usando terno branco e calça de boca fina (a chamada calça boquinha, com bolso muito fundo, no qual cabiam fumo, dinheiro, baralho e navalha);4) Usar o paletó sempre aberto, sapato de bico fino e lenço de seda no pescoço;5) Andar sempre gingando, em postura de combate, apoiando-se numa perna e flexionando a outra, alternadamente;6) Usar o chapéu como arma de defesa, dobrando-o e mantendo-o na mão esquerda quando estiver em combate (o chapéu, abas largas, deve trazer presa uma fita com a cor característica de sua malta: vermelho para Nagoas, branco para Guaiamus e assim por diante)..Numa época em que a moda inglesa e a francesa eram regras no Brasil, trajar um terno de linho branco era quase um crime. Não se sabe ao certo porque o branco ficou sendo uma espécie de uniforme da malandragem. Há algumas teorias. Para Gilmar Rocha, o branco exigia atenção máxima do malandro. Usar o terno branco era um desafio constante; quando estava sujo, indicava que o sujeito havia caído numa roda de pernada. Logo, manchas de terra ou sangue o desmoralizavam.. O folclorista Luiz da Câmara Cascudo nos chama a atenção para um outro detalhe: o terno branco era associado ao clima próprio dos trópicos, ao passo que o terno preto representava a sobriedade, o bom gosto e a autoridade da aristocracia. Por conta disso, o tecido branco era desvalorizado e, portanto, mais barato, sendo mais acessível às classes baixas. Não se pode esquecer também de um outro detalhe: quase todos os malandros eram ligados aos terreiros de macumba - onde a roupa branca é obrigatória.
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[Na foto: imagem de Zé Pelintra, o malandro cultuado na Umbanda].Nada era aleatório no vestuário do malandro. Os anéis nos dedos, por exemplo, podiam funcionar como instrumentos de trabalho. Diz um certo Meirelles (ex-polícia) à Márcia Ciscati no livro Malandragem e Boêmia em São Paulo: "O malandro usava um anel-espelho quando jogava baralho; então ele via as cartas e mostrava para o parceiro. A gente chegava e prendia esses malandros"..O delegado Padilha tinha uma técnica para saber se o sujeito era malandro ou não: abordava um suspeito e jogava um limão por dentro da cintura de sua calça. Caso o limão não passasse na altura do tornozelo, o homem era detido como vadio. A boca estreita da calça, conta o delegado, impedia que, na briga de rua, o malandro fosse derrubado pelas pernas..Extinto como personagem cotidiano, mas ainda vivo como arquétipo, o malandro era o inimigo público da sociedade industrial capitalista. Sua recusa em tornar-se um operário ajuda a explicar, em parte, a sua condenação e o seu desaparecimento; mas também explica a sua permanência como um anti-herói querido no imaginário popular.
excelente texto tenho 17 anos moro em bh, mais sou muito fã da malandragem, graças ao meu avo bom malandro
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