quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Guerras com armas musicais


Briga é muito ruim para o relacionamento humano, isso é fato, mas para a música popular brasileira algumas desavenças serviram para inchar nosso repertório musical de qualidade, quem não lembra da histórica briga entre Noel Rosa e Wilson Batista que rendeu vários sambas maravilhosos, outra guerra de música que aconteceu foi a de Herivelto Martins e Dalva (época bem propícia para postar algo sobre isso), para que vocês tenha idéia até Nelson Cavaquinho fez um samba para a Dalva "arengar" com o Herivelto, o samba é PALHAÇO, "Sei que é doloroso um palhaço se afastar do palco por alguém...", a canção faz uma citação ao antigo emprego do compositor.

A história é que Dalva como não compunha nada recebia letras de amigos para cantar e a maioria desses sambas eram diretamente oferecidos para o Herivelto e ele é claro se defendia com sambas lindíssimos também, só que de autoria própria.

Tudo isso é contado em detalhes por Pery Ribeiro, filho do casal, e Ana Duarte, sua esposa, no livro "Minhas Duas Estrelas". Leia abaixo um capítulo da obra que relembra como foi uma das maiores polêmicas da história da música brasileira:

Embora tenha sido meu pai quem decidiu se separar de minha mãe e mesmo já estando há alguns anos envolvido com outra mulher, isso não significou realmente o fim de um capítulo, como se poderia esperar. Ao contrário, foi o início de muitos outros capítulos. Meu pai não estava preparado para enfrentar a realidade de que minha mãe poderia sobreviver sem ele. Ela era sua "cria". O sentimento de posse, pessoal e artística, desenvolvido por ele em relação a ela era muito grande. Afinal, eles aconteceram juntos. Cresceram juntos naqueles catorze anos.

Para usar uma expressão muito em voga hoje, a formatação da vida de Dalva e Herivelto foi feita a dois. Não dá para falar de um sem o outro. Imagino que meu pai, apesar dos conflitos, sentia isso de uma maneira muito forte. Se sentimentalmente ele já estava substituindo-a por Lurdes, artisticamente a perda era irremediável para ele. Não se encontra mais de uma Dalva de Oliveira pela vida.

Penso que ele torcia para que se tornasse verdade o que tantas vezes dissera à minha mãe, para amedrontá-la, quando brigavam:

"Você não é nada sem mim. Eu inventei você. Não se esqueça disso, Dalva!".

Mas, apesar de toda a insegurança calcada por ele, ela tinha de enfrentar a sua estrada sozinha. E lançou, no começo de 1950, "Tudo acabado", de J. Piedade e Oswaldo Martins.

A letra da música caía como uma luva sobre a recente separação deles. O público, identificando o momento vivido por Dalva, fez da canção o primeiro grande sucesso de minha mãe sem meu pai. E parecia, aos fãs de minha mãe, uma resposta à música "Cabelos brancos", de meu pai e Marino Pinto, lançada antes. Apesar de ter sido composta muitos anos antes da separação, com o passar do tempo, por causa de sua letra, o público foi incorporando-a na briga musical.

Devido à grande aceitação do público, a gravadora Odeon lançou outro disco com Dalva, poucos meses depois, no qual minha mãe cantava de um amigo deles e ex-parceiro de meu pai, Marino Pinto, em parceria com Mário Rossi, o bolero "Que será".

Outro sucesso estrondoso! Meu pai não soube enfrentar esse sucesso que minha mãe alcançava sem ele e apelou. Foi aí então que estourou a grande guerra musical, quando meu pai escreveu em parceria com David Nasser a música "Caminho certo".

Este samba infeliz foi o estopim para que compositores do porte de Ataulfo Alves, Marino Pinto, Oswaldo Martins, Paulo Soledade, Humberto Teixeira, Nelson Cavaquinho, Alvarenga e Ranchinho, Lourival Faissal, Guaraná etc. tomassem as dores de minha mãe e compusessem desesperadamente para dar a Dalva, com suas canções, uma resposta a Herivelto. No mesmo ano, 1950, minha mãe gravou, de Ataulfo Alves, a música "Errei, sim".

Foi tanto o sucesso de "Errei, sim" que meu pai passou a odiar Ataulfo e por pouco não chegaram às vias de fato. Aliás, iria ser engraçado, Herivelto, baixinho, e Ataulfo, com aquela altura toda Conta-se que Ataulfo já havia composto "Errei, sim" alguns anos antes e, quando mostrou à minha mãe, ela imediatamente se identificou com a música e quis gravá-la.

A amizade desses compositores com meu pai ficou muito abalada. Ele se sentia traído por eles. Para Marino Pinto, inclusive, fez, em parceria com Benedito Lacerda, "Falso amigo".

Sei que foi Marino quem lhe causou mais mágoa, pois eles eram realmente muito unidos. E, por isso mesmo, acho que acabou sendo perdoado, anos mais tarde, e ele e meu pai até voltaram a ser parceiros nos anos 60.

É importante ressaltar que toda essa polêmica musical só aconteceu devido às características do mercado musical da época. Como os discos eram de 78 rotações (aquelas bolachas pretonas), com apenas duas músicas, era costume os cantores de sucesso lançarem dois discos por ano: um no Carnaval e outro no segundo semestre.

No caso de minha mãe, a gravadora, detectando o potencial de mercado que a polêmica musical causava, passou a botar lenha na fogueira, lançando até três discos de Dalva por ano nessa época. Em contrapartida, meu pai lançava outros três discos, assim tínhamos por volta de seis lançamentos deles ao ano, o que mostra que a cada dois meses havia uma música nova para o público adotar e abastecer o clima de guerra entre eles. O conflito musical continuava. Meu pai revidou a música de Ataulfo com o samba "Teu exemplo".

Marino Pinto e Paulo Soledade, no começo de 1951, deram a Dalva uma resposta forte, "Calúnia".Nesse mesmo ano, Herivelto, em parceria com Benedito Lacerda, lança "Consulta o teu travesseiro". E, também em parceria com Benedito, "Não tem mais jeito".

Para enfrentar mais esses ataques, minha mãe ganha de Nelson Cavaquinho e Oswaldo Martins o samba "Palhaço", uma sutil ironia à antiga profissão de meu pai.

Recém-chegada de Londres, Dalva lança, do disco gravado com o maestro Roberto Ingles, outra música de Ataulfo Alves, "Fim de comédia". Foi um tremendo sucesso. E, para encerrar o ano de 1951, minha mãe grava, de Luís Bittencourt e Marlene, "A grande verdade". Meu pai ataca outra vez, agora em parceria com Raul Sampaio, que entrara para o Trio de Ouro, com a música "Perdoar". Já no começo de 1952, depois do Carnaval, Dalva lança de Armando Cavalcanti e Klecius Caldas, que anos depois se tornaria parceiro de Herivelto, "Poeira do chão".

Do lado de minha mãe, eram muitos compositores trabalhando para enfrentar meu pai. Mas, aos poucos, a polêmica musical foi esfriando e os ataques foram se espaçando, dando lugar a sucessos como "Kalu" e "Ai, Ioiô", na voz de Dalva, e, no repertório de meu pai, aos tangos como "Carlos Gardel" e "Hoje quem paga sou eu", gravados por Nelson Gonçalves.

Todos esses ataques musicais de meu pai a minha mãe foram criando uma grande animosidade em torno dele. O povo realmente considerava minha mãe uma pessoa desprotegida e vítima dele. Para botar mais pimenta ainda nesse caldo, não satisfeito com o bate-boca musical (minha mãe fazia muito mais sucesso com as músicas do que ele), Herivelto aceita a infeliz sugestão do jornalista David Nasser para usar um espaço no Diário da Noite para se "defender" de Dalva, dando sua versão da vida a dois com ela.

Junto com David Nasser, meu pai começa a publicar no início de 1951 uma série de artigos diários (foram 22 capítulos ditados por ele e escritos por David) durante cinco semanas. Ele não poupou palavras nem desrespeito por aquela que foi sua companheira, mãe de seus dois filhos, e lhe deu suporte profissional durante mais de catorze anos.

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