Há sambistas conhecidos por seu lirismo e delicadeza das palavras, como Cartola. Outros pela inovação, como Baden Powell e seus afrosambas. Há ainda os contestadores, sendo Zé Kéti um dos principais representantes. Mas, na categoria “malandro” – daqueles que daria medo se topasse na rua – ninguém bate Geraldo Pereira. Dono de uma malandragem até dizer chega, de origem suburbana, tipo mal-encarado, Geraldo fez os sambas mais sensacionais da primeira metade do século 20 e que, até hoje, são regravados por muita gente boa.
Na obra do Geraldo não há espaço pro amor romântico, pras belezas da cidade maravilhosa ou pro brilho da lua. Ele é objetivo, preciso e mordaz. Uma das suas músicas mais significativas é Sem Compromisso (gravada magistralmente por João Gilberto), em que ele descreve um ataque de ciúme que qualquer cidadão de bem já teve ao ver sua amada dançando – e dançando feliz – com outro cara:
“Você só dança com ele, diz que é sem compromisso. É bom acabar com isso, não sou nenhum pai João. Quem trouxe você fui eu, não faça papel de louca, pra não haver bate-boca dentro do salão”.
Acredito que ele queria ser romântico, só não nasceu com essa habilidade. Em Bolinha de papel até que ele começa direitinho:
“Só tenho medo da falseta, mas adoro a Julieta como adoro a Papai do Céu. Quero seu amor, minha santinha, mas só não quero que me faça de bolinha de papel”.
Mas aí, caso a Julieta não ceda aos seus apelos, ele esquece o romantismo e apela pruma coisa que as mulheres – e os homens também, claro – adoram:
“Tiro você do emprego, dou-lhe amor e sossego. Vou ao banco e tiro tudo pra você gastar. Posso, ó Julieta, lhe mostrar a caderneta se você duvidar”.
E ele arriscou ser romântico novamente em “Escurinha”. Mais uma vez, Geraldo dá “bons motivos” pra ser aceito:
“Escurinha, tu tens que ser minha de qualquer maneira. Te dou meu boteco, te dou meu barraco que eu tenho no morro de Mangueira”.
Sensacional!
Ele podia tirar tudo da caderneta pela mulher que ama, dar o boteco, o barraco, mas, se a mulher pisar na bola, o romantismo se evaporava. E “pisar na bola” significava simplesmente ir ao baile sem avisa-lo!, como na letra de Acabou a sopa:
“Essa não é a primeira vez que você me aborrece e depois, com cara de santa, me aparece pedindo perdão. Sem me pedir foi ao baile, isso não se faz. Eu vou lhe mandar embora para nunca mais”.
Um cara desse não podia ter um fim mais coerente. Ele morreu após uma briga, em frente aos arcos da Lapa, com o lendário Madame Satã. Já estava com a saúde debilitada, levou um soco e, dizem, bateu com a cabeça no meio-fio. Foi para o hospital e morreu pouco tempo depois. Ainda internado, disso ao grande sambista Cyro Monteiro, que gravou suas principais músicas, que estava preparando uma outra letra pra “Escurinho”, na qual o personagem da música se regeneraria (a letra original é: “Escurinho era um escuro direitinho, que agora está com uma mania de brigão. Parece praga de madrinha ou macumba de alguma escurinha que lhe fez ingratidão”). Mas um escurinho morreu antes de regenerar o outro.
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